ou
Uma História da Morte
Sempre gostei de suspiros. Longos,
profundos e sonoros pontos-finais; uma mutação respiratória que vez ou outra se
perde no caos urbano. Para mim nenhum fim é mais agradável e mais sentido que o
fim marcado por um carregado suspiro. Felizmente, meu ramo de atividade é
repleto destes sons maravilhosos. Sou uma colecionadora, e registro em minha
memória cada suspiro que já ouvi. Uma pequena distração da rotineira eternidade
maçante que são meus dias e anos. Quem sou? Não sei dizer ao certo. Já fui
chamada de Thanatos pelos gregos, Anúbis pelos egípcios, Perca pelos nórdicos.
Tenho uma gama infindável de nomes e independente deste pequeno fato, sou
conhecida de todos os que passam por este mundo. Assustadora para alguns,
desejada por outros. Causo uma certa dualidade sentimental por onde passo. Sou
vilã, ou mocinha, dependendo de quem está em meus braços.
A humanidade me fascina desde o início
dos tempos. A beleza melancólica que cabe a cada ser humano é, a meu ver, o
mais belo tipo de arte. Uma longa sucessão de suspiros únicos, com os mais
diversos significados. A solidão que lhes assusta, mesmo sendo condição
primária de existência. A unicidade que
faz cada história ser especial, mesmo que se pareça com milhares de outras.
Para mim são objeto de apreciação constante.
Houve uma vez, um homem
extraordinariamente comum. Nasceu em uma noite de outono, em meio às gotas de
chuva e aos gritos de uma mãe já experiente. Os irmãos mais velhos gostavam de
ignorá-lo, os mais novos, o provocavam. Na escola, não era o melhor, tampouco o
pior. Era simplesmente mediano em tudo o que circundava sua existência com ares
de pateticidade crescente. Sonhava alto, até perder a fé em sua própria
capacidade de realização. Apaixonou-se duas vezes. A primeira, por uma garota
de cabelos de palha e olhos expressivos. Tinha dezesseis anos e um desejo
irreprimível de viver. Ama-la era ter acesso a uma infinita gama de sentimentos
que havia almejado por anos. Beijá-la era desaparecer em seus lábios de cereja,
e a proximidade acalmava o vulcão inconstante dentro dele. Era bom e para ele
duraria para sempre. Um dia, ela decidiu que queria mais vida do que ele
poderia oferecer. Ela partiu, e ele jurou nunca mais amar. Sua segunda paixão
veio anos depois, uma mulher de longos cabelos castanhos e olhar amendoado. Ela
o ensinou a olhar para o céu, e ele tentava superar o vazio que sempre
escondeu. Com ela, a vida era calma e gostosa de se viver. Não demorou muito
para que decidissem que a vida seria melhor, se passada na companhia um do
outro. Clássico, cliché, comum. Uma mentira contada até se tornar verdade. A
irresistível tentativa de aplacar a solidão a que todos os homens e mulheres
estão submetidos, desde o primeiro dia de suas não tão importantes vidas.
Então, eles fingiram que o amor
ocupava o espaço vazio em suas entranhas. Ele a trazia flores, ela exibia seu
melhor sorriso. Queriam filhos, para completar o ideal de família que tinham.
Tentaram, perderam, tentaram, sofreram. Já não eram mais tão felizes. O vazio
estava de volta e não conseguiam escondê-lo mais. Ela chorou, ele bebeu. Ela
procurou maneiras de preencher-se, ele se afundou em fugas mal sucedidas da
realidade em que era infeliz. Ela tentou reviver o que um dia existiu, ele não
se importava. Ela o deixou sem olhar para trás, e ele se perdeu em memórias de
um passado abandonado.
Uma rotina foi criada; acordava as
sete em ponto, com o som agudo do despertador; demorava-se na dura tentativa de
levantar-se e encarar o terror da vida real, a ressaca estampada nos olhos
caídos. O banho frio tinha a função de melhorar a aparência e eliminar os
efeitos do dia anterior. Café preto, ruim e amargo, pão do dia anterior. Descia
as escadas do apartamento para evitar o elevador e todas as socializações implícitas
em seu significado. O carro velho o levava até o emprego que odiava, na firma
que odiava, para sentar-se na cadeira que odiava. Um cigarro, um gole
escondido. Tic-tac lento, segundos arrastados. Comia sempre no mesmo
restaurante de esquina, olhando com inveja para o bistrô do outro lado da rua.
Mas o dinheiro não permitia grandes excessos, então o de sempre servia com
presteza. E de volta à mesa, as ligações, ao terror cotidiano. Mais um cigarro,
outro gole. Fim de expediente. Nunca voltava para o apartamento que nunca
aprendeu a chamar de lar. A parada era naquele bar de sempre, bebendo o de
sempre, o pensamento preso no de sempre. Só ia para casa depois de se sentir,
mesmo que minimamente, melhor. Dormia o sono pesado de quem tem de carregar a
obrigação de viver.
Décadas se passaram, mudanças mínimas
aconteceram. Um dia, o despertador e as responsabilidades não foram argumentos
bons o suficiente. A decisão, que já fora pensada outras vezes, o fez tomar
consciência de que o dia seria uma festa. Então ele se permitiu ficar na cama
até seu corpo começar a doer e o estomago começar a roncar. O banho foi quente,
agradável, longo. Não queria perturbar a gostosa sensação de completude que
sentia. Não ligou para avisar ao chefe, um homenzinho tão ríspido quanto
infeliz, que faltaria hoje; tinha a vida a se resolver. Vestiu-se da melhor
maneira possível e foi almoçar no tão desejado bistrô. Lá, observou as pessoas,
os sorrisos contidos por entre colheradas da melhor comida que já provara,
olhares furtivos por sobre as taças do vinho fino. Gastou quase um mês de seu
salário, mas a satisfação era palpável. Andou pelas ruas, sem destino. Pensou
nas duas mulheres que amou, nos filhos que nunca teve, nos irmãos, que a muito
não via. Pensou nos pais, mortos há anos, em tudo o que o levara a situação
atual. Viu o sol se por, admirou as cores do fim, e do início. Passou em um bar
no caminho de volta, comprou uma garrafa da melhor bebida e foi para casa,
comemorar.
Escondido no fundo do armário de
madeira, seu último ato do dia lhe aguardava. Pegou entre os dedos trêmulos,
levou-a para a sala porcamente mobiliada e sentou-se na poltrona gasta. O
brilho refletido pela lua cheia iluminava seu desejo. Era inverno, e vento
agora assoviava por entre as árvores. Tocou o cabo frio da arma que tinha em
mãos. Doce aço que guardou por anos, à espera deste dia. Bebeu, e admirou sua
pequenez. Sentia-se tão só quanto um ser humano tem direito de se sentir.
Chegou a conclusões que nunca quis admitir. Pensou, e repensou. Até que
finalmente, levou a amiga às têmporas. Era pesada, e possuía em si o peso
adicional de toda a melancolia que ronda a afável existência. A garrafa jazia
esquecida na mesinha ao lado, enquanto o dedo, no gatilho, tremia levemente.
Suspirou.